segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Xavantazo

“Los de afuera son de palo”, disse El Negro Jefe Obdulio Varela antes do Uruguai provocar o maior revés da história do futebol brasileiro, na final da Copa de 1950. 

“Os de fora são de madeira” tratava de minimizar a influência que os 200 mil espectadores daquela histórica tarde no Maracanã poderiam ter no jogo, que afinal de contas seria decidido dentro do campo. Pois os 60 mil aflitos e ensandecidos torcedores do Fortaleza que compareceram ao Castelão também foram encarados como inofensivos tapumes pelo Brasil de Pelotas e sua inabalável disposição a fazer história. 

É provável que o 17 de outubro seja lembrado pelos xavantes como os uruguaios se recordam do Maracanazo. A medida da grandeza depende de quem lhe atribui significado, e para os rubro-negros a façanha do último sábado, mais do que representar um dos maiores feitos da história do clube, também carrega em si muito do que se conhece como alma xavante. 

Traduz a história do clube e também nos fala nas entrelinhas sobre a relação que cada torcedor tem com aquela camisa: uma constante trajetória de provação, que reduz a nanopartículas os 250 km entre Porto Alegre e Pelotas, caminho que os xavantes já estão se acostumando a repetir para buscar o time no aeroporto e levá-los nos braços do povo de volta para a zona sul do Estado. Há dois anos, o Brasil de Pelotas estava na segundona gaúcha e nem frequentava as divisões nacionais. 

E não se trata de déjà vu: em outubro de 2014, os xavantes realizaram outra procissão para comemorar o acesso à Série C brasileira. A meteórica ascensão no cenário nacional é mérito do clube, que soube organizar a casa e bancou o trabalho de longo prazo do técnico Rogério Zimmermann, que hoje é uma verdeira entidade xavante, e também da torcida, este inabalável alicerce que resistiu aos vendavais esperando uma manhã de primavera. Planejamento em vermelho e negro com raízes fincadas em Peloras e germânica eficiência: se hoje o Rio Grande do Sul volta a ter um representante na Série B após anos de seca, o crédito deve ser todo concedido à comunidade xavante – time, diretoria e torcida. (E não deem ouvidos aos auto-proclamados alienígenas mecenas que certamente vão aparecer.) 

A torcida do Brasil de Pelotas não é grande, mas a impressão é que são milhões esparramados pelo país. Porque cada xavante é um estandarte do clube, que vive para espalhar as palavras da salvação. Seja em Porto Alegre, na eterna tentativa de implodir esta trincheira azul e vermelha, ou em Manaus, em uma incansável tática de guerrilha ideológica continente acima e afora.

Porque xavante não torce, ele pertence a uma causa. No futebol brasileiro, em tempos de torcedor-cliente, poucas relações entre torcedor e clube são tão puras. Então, quando esta relação é brindada com uma façanha dentro do campo, o torcedor xavante a encara como resultado de seu próprio esforço, do empenho que entrega diariamente ao seu clube. 

No Maracanazo xavante de sábado, Ghiggia estava no gol: o demônio de luvas Eduardo Martini jogou como cada torcedor imaginava em suas mais delirantes noites de angústia. Nenhum jogador nascido na margem oriental do Rio da Prata vestia a camisa rubro-negra, mas é impossível não recordar de Claudio Milar, ídolo uruguaio vitimado naquele acidente de 2009, tragédia que teve como efeito colateral solidificar ainda mais a identidade do Brasil. 

Enquanto Martini se desdobrava embaixo das traves, Milar mantia o arco esticado, a flecha na boca do brete, braço tensionado esperando o apito final. Porque a impressão é que nenhuma vitória rubro-negra é apenas esportiva: sempre significa uma celebração da sobrevivência, sua e do clube. Estas dificuldades extremas enfrentadas dentro e fora do campo ensinaram aos xavantes que, bem, tanto no futebol quanto na vida los de afuera son de palo.




*Douglas Ceconello - Blog Meia Encarnada

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